Felon dá ordens de que preparem um almoço de festa para receber a noiva. Dee lidera a organização do evento. Tenta manter a altivez que a caracteriza, mas sente-se incomodada, ao ponto de se descontrolar no controlo de certas tarefas básicas que desempenha diariamente, sempre com precisão. Não consegue descobrir o porquê de aquela voz, aquela tentativa de olhá-la nos olhos, lhe provocaram tanto desconforto e nervosismo. Trazem-lhe recordações. Estranhas recordações, vindas do passado. Teme a altura em que tem de estar ao pé dela de novo. Não está a saber lidar com essa sensação.
- O quarto é enorme!
Linda aprecia-o. Já que decidira tomar as rédeas da sua história tinha de conhecer o que a rodeava. Aquele quarto tinha sido arranjado para si ou já tinha estado lá outra mulher, nas mesmas condições que ela?
Era um quarto aparentemente acolhedor. Se não fosse a porta estar trancada, ela até poderia sonhar que estava num hotel. A imagem de Gray dá-lhe coragem para seguir com a sua estratégia. Abre gavetas, armários, escrivaninha, tinha ali tudo o que precisava. O roupeiro estava cheio de roupa, maior parte vestidos. Muitos vestidos de festa. Passa-lhes a mão pela textura. Tira alguns para fora, escolhe. Veste-se.
Cândia desce as escadas que conduzem desde os quartos á planta baixa. Vestiu-se para a ocasião. Quer mostrar á nova hospede da casa quem manda ali. O coração palpita-lhe no peito descontrolado, sente-se tensa.
- Vou mostrar aquela campónia quem ela é.
Sussurra entre dentes, esboçando um sorriso cínico. Pretende mostrar a Linda que não está á altura dele, o homem que ele é… mesmo que se tenha de basear em algumas mentiras,do tipo, que é dela que ele gosta, que ele é um mulherengo e que ela sabe bem disso, mas que não se importa porque ele é dela.
Entra na cozinha e procura Dee entre os empregados. Aproxima-se. Encosta-se ao balcão descontraidamente, pega numa maçã de uma taça de vidro, trinca-a e espera que Dee fique sozinha com ela.
- Já a viste hoje?
Dee olha-a, sorri-lhe, observa-a e alegra-lhe o dia.
- Cândia, está muito bonita.
- Achas Dee?
Dá uma voltinha peneirada e retribui-lhe o sorriso.
- Hoje vou arrasar. Vou pôr aquela parola no sitio.
- Claro que sim, nunca foi de perder a fé em si, pois não? A menina não tem rivais á altura.
- Eu sei.
Faz novamente um ar perverso acompanhado de um sorriso.
A sua desde sempre cumplicidade, quase de mãe e filha, vingativas e malvadas para atingir os seus objectivos, selava-se sempre pelas mesmas causas.
- Sabes, aquele livro que me emprestaste dos preparados? Tenho andado a treinar umas misturas.
Encosta-se novamente ao balcão, cruza novamente os pés, trinca novamente a maçã.
- Muito bem.
Responde Dee, continuando a tirar os seus apontamentos para um livro preto e dourado, muito bem encadernado com um fecho elástico. O seu ar soberbo de governanta da casa e os óculos dourados de marca na ponta do nariz dão-lhe altivez. Olha Cândia, ouve-a falar de boca cheia de maçã, observa-a com orgulho. Orgulho de uma mãe, que tem orgulho da obra-prima. Não era sua mãe natural, mas ela é que lhe ensinara tudo o que ela sabia, ela é que a tinha criado, á sua maneira, sem falhas, perfeita, maléfica, sem escrúpulos, sem medo de atingir um fim. Ouvi-la falar assim com tanta determinação, um plano, um esquema, uma estratégia para afastar Linda, soava-lhe a música. Ajudaria a sua filha no que pudesse para a por dali para fora. Baixa a cabeça, volta a escrever, denuncia algum temor, mas disfarça.
- Cândia, está linda. Devia vestir-se assim mais vezes, está realmente esplêndida.
- Noto-te um pouco tensa, ou é impressão minha?
Diz Cândia mostrando também alguma inquietação.
- Fala-me, o que se passa. Alguma coisa que sabes e não me queres dizer? É sobre ela?
- Não gosto dela.
Responde Dee sem levantar a cabeça, continuando a escrever.
- A sua presença incomoda-me.
- Estás com ciúmes Dee?
Pergunta Cândia em tom de graçola sabendo de antemão que Dee sempre gostara do seu pai, nunca no entanto, o tenha confessado.
- Disparate Cândia! Então o respeito, ficou na gaveta?
Responde mostrando-se sisuda e séria. Levanta-se da cadeira e abandona a cozinha com o livro debaixo do braço. Cândia segue-a.
- Então, vá lá, foi uma brincadeirinha, não fiques amuada comigo.
Dee volta-se e fica frente a Cândia, olha-a, deixa-a também séria, semi-serra os olhos, força os lábios a fecharem.
- Nela existem forças que me enfrentam, não é deste mundo. Percebes? Vai com cautela. Juntas, vamos conseguir vencê-la.
O vestido é de um azul esverdeado, contrasta com o dourado da sua pele. Na cabeça tem uma travessa com pedras que prende o seu cabelo de um só lado, deixando o outro lado num ondulado solto. A sala de jantar é ampla, soleada. Linda pede delicadamente aos empregados que abram as janelas para o ar circular e o sol entrar na divisão. Eles cumprimentam-na e dão-lhe as boas vindas com uma simpática e ligeira vénia com a cabeça, mas ela pede-lhes que não tenham esses modos formais com ela. A sua beleza e simplicidade envolve-os em amor. Gostam dela. Nunca serviram assim ninguém lá em casa, a ideia de ter uma patroa assim deixa-os entusiasmados e servem-na com prazer.
Dee e Cândia entram na sala de jantar, onde a mesa já está preparada para o almoço e deparam-se com Linda liderando as tarefas da dona da casa. O misto de raiva e medo petrifica-as á entrada da sala. Dee reconhece-lhe logo o vestido e acessórios e solta-se-lhe um inesperado galope dentro do peito, o seu coração dispara deixando-a á beira de um colapso nervoso. Linda repara nelas e ignora-as, o que as deixa ainda mais irritadas. Aquela mulher movimentava-se em casa como se fosse dela. Despede-se dos empregados e dirige-se a elas.
De ombros bem levantados, os braços caídos, unidos pelas suas mãos, e os dedos entrelaçados, lança-lhes um sorriso.
- Bom dia.
Diz-lhes. Desconhecendo ela a entidade e boa fé das duas, deixa o caminho aberto á dúvida. Não as quer mal. Não as conhece. Tem de saber sondar o terreno. Sente-se nervosa, mas, a preocupação dela por Gray fazem-na desempenhar bem o seu papel. Precisa saber dele e a confiança e poder que puder ter dentro daquela casa, ajudá-la-ão a conquistar a liberdade para poder ir ao seu encontro, falar com ele, explicar-lhe toda a situação. Deseja senti-lo perto, deseja sentir o bater do seu coração. Olhá-lo nos olhos.
Cândia recompõe-se do susto. Endireita-se. Levanta a cabeça e inclina-a indiferente para trás.
Dee faz um sorriso cínico, põe a mão sobre o peito, e discretamente massaja-o a fim de baixar o ritmo cardíaco.
- Obrigada por me ter aberto a porta do quarto.
Volta a falar Linda, fazendo um sacrifício em mostrar simpatia, mas ao mesmo tempo mantinha uma postura muito firme às suas convicções.
- Foi ordem do conde, não precisava descer tão cedo, eu ia chamá-la quando estivesse tudo pronto para almoçar, .
Responde Dee mantendo uma certa cortesia disfarçada de ironia.
- Também não precisa preocupar-se com o trabalho dos empregados, a minha função é fazê-lo.
- Mas eu gosto dessas tarefas e como dentro de pouco vou ser a mulher do dono da casa, gostaria de ser eu a tomar certas decisões…, se não for um problema, claro.
Contrapõe Linda, muito confiante. Esta seria a primeira prova em relação a Dee. A mulher que pelos vistos, desde sempre tivera o papel da senhora da casa. Como iria ela reagir a este roubo de estatuto? Seria uma mulher humilde que aceita a divisão de tarefas como uma parceria, ou iria á disputa do lugar, contra tudo e contra todos?
- Não me parece que faça falta preocupar-se com essas coisas. Sempre desempenhei muito bem esse papel nesta casa, que fique bem esclarecido…, vão-lhe aparecer muitas coisas com que se entreter, tenho a certeza.
- Pois vão certamente, mas a partir de hoje, se o conde realmente me quer para sua mulher, ele irá concordar que eu faça o que me faz mais feliz…, ou não?
Faz-se silêncio na sala. A guerra estava declarada.
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